27/08/2017

Sangue, Medo e Humanismo em Macbeth




Macbeth: ficção ou realidade?

Por meio de um trabalho de crítica, buscar-se-á neste estudo analisar a obra shakespeareana Macbeth relacionando-a com o contexto social, político e cultural do período chamado Renascimento no qual esta foi produzida. Para tal é válido primeiramente gerar um hiato em tal análise, objetivando um entendimento sobre a base de criação da tragédia escrita por William Shakespeare, bem como sobre tal autor. E, para tanto, deve-se explicitar quem foi a figura histórica Macbeth e qual a conexão deste texto com o tempo de Shakespeare.

William Shakespeare nasceu em Stratford-on-Avon, Inglaterra no ano de 1564. Filho de comerciantes, deixou a cidade aos doze anos indo para Londres onde se tornou ator e, posteriormente, por volta de 1592, dramaturgo de reputação sólida; sendo sua companhia patrocinada, primeiro, pela rainha Elizabeth I e, a posteriori, por Jaime I. A trajetória de sua vida é ainda bastante nebulosa, mas acredita-se que enriquecera com suas quase quarenta peças, cento e cinquenta sonetos e dois poemas narrativos¹. As tragédias, ao que parece foram as maiores responsáveis por tornar Shakespeare a celebridade que ainda é atualmente. O dramaturgo também tornou-se um proprietário de terras, vindo a morrer, em 1616, em sua cidade de nascimento.

Shakespeare baseou-se em acontecimentos históricos da primeira metade do século XI para criar uma de suas maiores obras do conjunto das tragédias – ao lado de Rei Lear e Hamlet. Para efeito de esclarecimento, na época citada acima, teria vivido o rei escocês Macbeth (ou Mac Bethad, em gaélico), da casa de Molray. Sendo dos últimos reis de origem gaélica da Escócia e neto do rei Malcolm II, Macbeth tinha direitos legítimos ao trono tanto quanto Duncan e no ano de 1040, tornou-se rei, após vencer Duncan em batalha. Considerado um bom rei, seu governo fora próspero, sendo por fim, sucedido no trono em 1057 por Lulach, filho de sua esposa, Gruoch, com o primeiro marido dela. 

Mudando o foco, então, para o âmbito ficcional, a tragédia shakespeareana Macbeth se passa numa Escócia noturna e fantasmagórica que, ao se centrar na personagem-título, traz para o mundo ficcional muito do imaginário contemporâneo de Shakespeare. Escrita possivelmente em 1606², a peça conta a história do bem sucedido general Macbeth, vassalo do rei Duncan I, que após uma honrosa vitória em batalha tem o caminho cruzado por três bruxas que vaticinam sobre seu futuro, como thane³ – equivalente a um grande senhor de terras – de duas localidades na Escócia, bem como futuro rei.

Influenciado pela própria imaginação, Macbeth projeta antecipadamente os caminhos que o levariam ao trono escocês, percebendo assim que seu obstáculo maior, no caso, o rei Duncan, deveria ser removido; contudo, antecipadamente também, Macbeth já convivia com a consciência da gravidade de seu ato.

Os críticos da obra4 não conseguem entrar em um consenso sobre o mentor intelectual maior por detrás da tramoia contra Duncan: se seria Lady Macbeth, ansiosa pela posição de rainha; ou se o próprio Macbeth, que, aparentemente, passa a  pensar no poder como algo a se almejar somente após o encontro com as bruxas. De qualquer forma, os Macbeth em parceria planejam e executam o assassínio do rei escocês quando este se encontra hospedado no castelo do casal. O único "senão" de tal investida é o sangue que tinge as mãos de Macbeth e esposa para não mais sair.

Após a tragédia, Macbeth é coroado rei e tem o prazer, mesmo que momentâneo, de sentar-se ao trono. No entanto, o mote principal da história, o medo, volta a demonstrar sua força quando Macbeth recorda-se que as três bruxas profetizaram para Banquo, também general de Duncan, ser o glorioso futuro de sua linhagem real. O temor de perder o trono leva Macbeth, que, na história de Shakespeare, não tem herdeiros para sua coroa, a planejar a morte de Banquo. O objetivo é alcançado, mas como um revés do destino, o filho de Banquo, Fleance, consegue escapar à emboscada. Somado a isso, o fator imaginativo de Macbeth personifica sua consciência dos assassinatos na figura fantasmagórica de Banquo levando o rei a acessos de loucura. A desconfiança sobre as mortes de Duncan e Banquo firmam-se em relação a Macbeth e as conspirações para depô-lo se tornam evidentes quando Malcolm e Macduff buscam ajuda na Inglaterra. Ajunta a isso a insânia de Lady Macbeth que, após a morte de Banquo, enlouquece de culpa, buscando constantemente lavar-se do sangue que lhe tingia as mãos. 

Macbeth, sem mais o apoio presente de sua companheira de atos, busca respostas para suas dúvidas nas chamadas Mães-dos-Fados, as bruxas. E, por meio de aparições invocadas por estas, o rei atenta sobre seu destino. A primeira aparição fala a Macbeth sobre o passado, mandando-o tomar cuidado com Macduff (o nobre de quem foi tirada a vida da família inteira a mando de Macbeth). A segunda aparição fala do presente e do fim de Macbeth sob o julgo de um não nascido de uma mulher. E a terceira fala da incrível cena do fim do reinado do usurpador, quando a floresta próxima ao castelo subiria o monte até os portões da fortaleza. 

Os momentos que precedem a batalha, bem como durante seu acontecimento, são muito próximos, numa sequência que demonstra a derrocada para o fim do colérico rei escocês. Lady Macbeth, ao que dá entender na tragédia, é encontrada morta em seus aposentos - e mais tarde, saber-se-á que se matou diante do tormento de viver sob a loucura advinda da culpa. Paralelo a este episódio, Macbeth percebe-se sem o temor, que tanto ele próprio infligira a seu povo, enfrentando corajosamente o destino que o espera. Contudo, à medida que as profecias se tornam reais - como a floresta que ao se aproximar do palácio, descortina-se, na verdade, no exército de dez mil homens, comandado por Siward e Malcolm, filho de Duncan, que carregavam galhos a fim de ocultar temporariamente o poderio de suas forças -, o rei escocês fada-se a seu destino segurando-se na vã esperança de não existir sobre a terra um ser não nascido de uma mulher.

Entretanto, após o ataque e invasão da fortaleza, Macbeth peleja com Macduff, que descobre ter sido retirado do útero antes do tempo. Este luta e tira a vida do rei escocês - que se negara a lutar contra o nobre de quem dizimara toda a família. Desse modo, diante de todos Macduff ressurge com a cabeça de Macbeth e conclama Malcolm, filho de Duncan, como rei da Escócia.


As influências renascentistas

Apesar da licença poética empregada na criação do Macbeth, vilão e usurpador, de Shakespeare deve-se observar que as sucessões reais não eram estáveis nesta época (como também nunca o foram durante toda a História), perfazendo a passagem do trono sempre sob conflitos de interesses de famílias com laços de parentescos. Assim, a investida ao trono seria um reflexo natural do contexto político em que se encontrava Macbeth (tanto o ficcional quanto o não-ficcional) apoiado por outros que poderiam ver legitimidade em sua reivindicação ao trono.

É interessante considerar tal ponto para que se possa entender a mudança da personagem Macbeth da história, digamos real, para a peça shakespeariana. Primeiramente, a tragédia seria considerada uma das mais "pagãs" das peças de Shakespeare onde, apesar de permanecer seu cunho medieval e católico, "Macbeth nega qualquer pertinência à revelação cristã"5. Tal ato pode ser percebido nas várias passagens, onde, muitas vezes, se esperaria os rogos cristãos ante os crimes de Macbeth, mas que simplesmente inexistem. A individuação concernente à obra de Shakespeare em tal peça demonstra uma ruptura com uma literatura que a tudo justificava pelo dualismo, aonde o mal seria combatido veementemente pelo bem, encarnado na salvação cristã. Contudo, em Macbeth os parâmetros cristãos são evitados e até mesmo não se sabe ao certo se existirá um "além-morte" para os Macbeth. Tal ruptura é extremamente importante de ser tratada para que se perceba que o tipo de governo pensado por Macbeth não abriria espaço para que um poder temporal viesse a medir forças com o secular. A permuta entre o sagrado e o secular rende a ideia de governo de Macbeth como sendo de um absolutismo pleno.

O que se pode apreender também é que o livro possui uma influência de cunho político mais clara ainda: mostra uma resistência ao domínio inglês por parte dos descendentes celtas na pessoa do incontrolável rei Macbeth, combatido pelos ingleses. Shakespeare como homem de origem inglesa e sendo um artista patrocinado pelos monarcas ingleses, trouxe à baila tal revanchismo. Uma homenagem mais clara feita ao rei inglês seria o personagem Banquo, lendário ascendente dos Stuarts. Assim, querendo demonstrar seu patriotismo para com sua pátria – formada exatamente no reinado de Jaime I –, o dramaturgo mostra os meandros da política ligada, às vezes, ao apoio, às vezes, à interferência da Inglaterra.

Um ponto ressaltado, pela crítica literária Barbara Heliodora, nos fala da peça Macbeth como sendo sobre "uma afirmação do mal"6. Os meandros para se chegar ao poder passariam, assim, notadamente pela traição, perfídia, pela conspiração e pela influência do sobrenatural (que vaticina, ou seja, prevê o futuro do general Macbeth), bem como traz à baila a consciência de erros que deveriam ser cometidos em nome de um "bem" maior. Tais "males necessários" a uma consolidação de poder, no entanto, refletiriam bem a dinâmica da civilidade da Renascença. A violência encontrada em Macbeth choca mais nos tempos atuais do que surpreenderia aos contemporâneos de seu autor, visto que muitos dos que compareciam aos teatros elisabetanos estavam devidamente acostumados às execuções e decapitações em praça público; rompendo assim com a ideia de que o Humanismo dos séculos do Renascimento teriam acabado com o uso da violência e de ardis diversos que pudessem levar ao poder.

Assim, o Macbeth da peça, que teria sido escrita entre 1603 e 1606, poderia entender que certos atos eram imprescindíveis para que se tornasse rei e no trono pudesse se manter. Como homem de seu tempo, Shakespeare percebia ser desnecessário maquiar a verdade de seu tempo ao escrever uma peça que falasse da natureza humana sem tocar-lhe as partes mais frágeis, no caso, a disputa pela coroa. Contudo, a consciência que Macbeth tinha de seus atos o acompanharam, como que para mostrar-lhe o quanto ele – mesmo predestinado a ser grande – ainda assim, não passava de um ser imperfeito.


Macbeth: a imagem do medo

O Macbeth de Shakespeare é a "imagem" do medo. Ainda em sua tragédia, a peste e a fome se mantém como fantasmas do homem renascentista. A ruptura em relação às ideias medievais não ocorrem tão abruptamente como se pensaria. E, mais ainda, seria desnecessário romper-se com algo que manteria a ordem. Assim, além dos males considerados “castigos divinos”, vemos o monarca sofrer do temor de um regicídio, tal qual ele cometera. O medo tolhe sua mente e corpo e, ligado a uma  imaginação fértil, como a de Macbeth, leva-o a cometer os mais hediondos crimes a fim de conservar o que considera apenas seu por direito; tal qual o conceito firmado pelo rei Jaime I sobre o direito divino dos reis7. Tal ponto tem relevância direta para se entender o homem renascentista, pois ao acercar-se de si mesmo, ao perceber o horror que se encontra em seu interior, o homem se apercebe do quanto é o lobo de si mesmo.

O medo em  Macbeth parece também afastar o personagem principal da religião e aproximá-lo do sobrenatural. A história inteira passasse sob a influência do sombrio. Ao que parece Macbeth seria um aviso aos homens renascentistas para que não buscassem voltar às trevas da Idade Média. O paralelo que Shakespeare faria, então, em relação à peça e sua realidade seria vislumbrar o homem de sua época como aquele que buscaria, por meio da razão, explicar o mundo em que vive e no qual se organizava, sem, contudo, deixar de estar ligado ao supersticioso, ao não-natural, ao falho, ao imperfeito, que tanto o fazia recordar de seu caráter ainda medieval. Em Macbeth, pode-se perceber a busca pela manutenção da humanidade do rei, de sua sanidade; contudo, ela se perde em meio ao sangue que constantemente coagula-se em suas mãos.

O inexplicável, mais um medo com o qual não apenas Macbeth, mas também o homem renascentista teria de lidar, tem seu lugar quando a peça trata das três bruxas profetisas8, bem como no fantasma de Banquo assombrando, junto com sua linhagem, a cabeça coroada de Macbeth. As bruxas, tomadas quase à semelhança de forças como as parcas gregas, lembram sempre o caráter sobrenatural da peça. O temor ao desconhecido toma corpo e não mais deixa de ter interesse ao ser analisado pelo homem do Renascimento.
O autor de  Macbeth não busca por meio de sua tragédia romper com a religião oficial ou invalidá-la completamente. Ao contrário, a busca pelo desconhecido é um sinal claro de que o homem da renascença apesar de manter seus temores "antigos", passa a olhar o sobrenatural, o alheio à sua realidade, o que se "oculta nas sombras", de frente. A ciência caracteriza tal nova forma de olhar, pois mesmo que as referências ainda estejam na Antiguidade Clássica – como  demonstrado por Shakespeare ao dizer que Macbeth é noivo de Belona, a deusa romana da guerra9 –, o interesse pelo desconhecido interfere, mesmo na vida de reis – como Jaime I que chega a escrever um livro intitulado Daemonologie em 1597 por conta de sua obsessão com o sobrenatural.

Por fim, o mais interessante em relação ao Macbeth de Shakespeare e sua ligação com a época em que o escritor inglês viveu seria o ponto tratado por Liana Leão, em seu artigo sobre o livro Reflexões Shakespearianas da crítica literária Bárbara Heliodora, quando a doutora em letras - Liana Leão - atenta para o fato de que como o Édipo da tragédia grega, Macbeth cai na armadilha que ele mesmo cria ao simplesmente "não se conhecer a si mesmo, não saber se avaliar"10. A busca principal do homem renascentista cai por terra quando o Macbeth de Shakespeare ao buscar ser o rei perfeito para o reino perfeito, o faz por meio de erros e crimes sem perceber seus limites.

Assim, o panorama a respeito do homem renascentista abre-se como se tivesse um pé sobre uma nova era de comportamentos, pensamentos, ideias e costumes, porém, sem que estes mesmos homens se desfaçam dos medos, receios e ações violentas que os próprios renascentistas tanto gostavam de atestar como pertencentes a "atrasada idade das trevas". Macbeth seria a representatividade shakespeareana maior sobre a natureza do homem renascentista e todo horror que ela seria capaz de provocar. A mais sangrenta das peças de Shakespeare denota que as ideias humanistas, para firmarem o poderio de um governante, necessitariam da força e da violência, símbolos, também, da Renascença.



Texto de  Cristiane Vieira, Karine Resende, Camila Costa, Liliane Leite e Marcos Fernando




Notas:

[1] RAMOS. Apud. SHAKESPEARE: 1985, 153.
[2] BLOOM: 1998, 17.
[3] RAMOS. Apud. SHAKESPEARE: 1985, 130.
[4] (LEÃO: [200-] ), (RAMOS. Apud. SHAKESPEARE: 1985).
[5] BLOOM: 1998, 635.
[6] LEÃO: [200-], 3.
[7] LOPES: 1992.
[8] As bruxas chamadas na versão original por Weird Sisters teriam sido colocadas na história por Shakespeare como uma forma de agradar a Jaime I, que unificara os reinos de Escócia e Inglaterra, quando este andava obcecado com bruxas e feitiços ao ponto de escrever uma Daemonologie em 1599.
[9] BLOOM: 1998, 648.
[10] LEÃO: [200-], 3.




Referências Bibliográficas:

Livros:

BLOOM, Harold. Shakespeare: a invenção do humano. Trad. José Roberto O'Shea. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1998.

CHABOD, Federico. Al renacimiento em lãs interpretaciones recientes. In. Escritos sobre el Renacimiento. Ciudad del Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1990.

HELIODORA, Bárbara. A expressão dramática do homem político em Shakespeare. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

LOPES, Marcos A. O direito divino dos reis: para uma História da linguagem política no antigo regime. In.: Síntese Nova fase. v.19 nº 57. FAFI-BH, Belo Horizonte: 1992.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. Trad. Péricles E. da Silva Ramos. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.


Links para Internet:

____________. Macbeth, de William Shakespeare. http://www.passeiweb.com/ na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/m/macbeth   acesso em 18/08/2008.

____________. Duncan and MacBeth. http://www.historic-uk.com/HistoryUK/ Scotland-History/DuncanandMacbeth.htm  acesso em 18/08/2008.

LEÃO, Liana. Um Shakespeare em primeira mão. [200-]. www.utp.br/eletras/ea/eletras11 /texto/Resenha11_1.doc   acesso em 18/08/2008.